O SABOR AZEDO NÃO É DEFEITO, MAS SIM
DIFERENCIAL DA SOUR BEER, QUE SE FIRMA POR
AGRUPAR INÚMERAS REFERÊNCIAS DE PASSADO
Não foram poucos os que
viraram o nariz quando publicações internacionais divulgaram
entre suas tendências do mundo cervejeiro a Sour Beer. O
sabor azedo não é bem-vindo na maioria das bebidas e
alimentos, mas na cerveja, quando bem inserido, pode ser o diferencial. Apesar
do termo “cerveja azeda” soar estranho a princípio, existem alguns sabores
muito interessantes a ser descobertos nesses rótulos. Essa bebida traz consigo
referências de paladar encontradas há séculos. Hoje em dia, os atuais
produtores têm usado novas técnicas para aprimorar e arredondar o gosto do estilo
clássico e eventualmente até desenvolver outras possibilidades.
Notas azedas em cerveja
podem vir de diversas fontes. Claro, que uma produção
contaminada e com defeitos pode apresentar esses sabores, mas aqui
queremos falar das que intencionalmente apresentam essas
características. Uma grande variedade de bactérias pode conferir
tons azedos a uma cerveja. Frutas e especiarias também são
agentes que trazem eventuais notas de azedo e acidez.
Nossas papilas gustativas
registram as notas de azedo por meio da intensidade da
acidez, associada ao sabor característico. Essas sensações podem
variar entre notas de vinagre, ácido lático, de somente acidez, dentre
outras, baseadas nos níveis de acidez, de sabor e de aroma.
As fontes primarias de
acidez são geralmente relacionadas a bactérias Lactobacillus e Pediococcus,
ambas produzindo ácido lático e as Acetobacter, que produzem o ácido acético
(vinagre). Ambos os ácidos podem interagir com o álcool, produzindo os ésteres.
Esses elementos todos, quando bem combinados, podem resultar em grande complexidade
de sabor e aroma em uma cerveja.
O FERMENTO SELVAGEM
O fermento cervejeiro
(Saccharomyces cerevisiae) foi isolado apenas depois de 1800, permitindo que os
cervejeiros usassem apenas cepas de levedura puras. Naquela época foi
descoberto o Brettanomyces, também
conhecida no meio cervejeiro por Brett – que normalmente é relacionado a
sabores e aromas não desejados, tanto em cervejas como em vinhos. Sua descrição
de sensações não deixa dúvidas: cobertor de cavalo, suor animal e celeiro são
algumas delas.
LAMBIC
Os fãs das Lambic reconhecem
essas sensações de paladar como qualidade para o estilo, quando bem inseridas.
E elas vêm justamente das Brettanomyces, uma vez que as cervejas passam por um
peculiar processo de “fermentação espontânea”, em que não há adição ao mosto de
levedura, para a fermentação. São as leveduras selvagens existentes no ar que
fazem esse trabalho.
Durante este processo, no
qual a cerveja estagia em tonéis de madeira por um longo período, é que a Brett
age, conferindo à cerveja muito de suas características. O estilo Lambic, que
só é produzido em uma região
que compreende Bruxelas, é considerado o mais antigo da Bélgica.
Barris na cervejaria Cantillon - Bélgica |
ENVELHECIMENTO EM MADEIRA
Por muitos séculos, as
cervejarias usavam tonéis de madeira para fermentar, maturar e armazenar as
cervejas. E a madeira não é facilmente sanitizada, abrigando uma série de
micro-organismos em sua porosa superfície.
Isso invariavelmente trazia notas desagradáveis à cerveja. Brettanomyces é um
clássico encontrado nesses barris. Porém, muitos cervejeiros enxergam também
qualidades no uso de
barris de madeira em suas produções. Quando bem controlada, a fermentação em
barris de madeira pode proporcionar Brett de forma interessante. Os tipos de
madeira também trazem sabores e aromas positivos. O carvalho, por exemplo,
confere notas de baunilha ao líquido. Barris que antes haviam sido usados por
outras bebidas, como vinho, conhaque e uísque, também podem contribuir, com seu
sabor, para a cerveja.
DO PASSADO AO PRESENTE
Com o isolamento das
leveduras viáveis e a invenção da pasteurização estava praticamente decretado o
fim das cervejas azedas. Mas será que essa característica era tida apenas como
indesejável?
Estilos, como Lambic,
dependem e muito das notas azedas e acéticas para ser fiéis a sua origem.
Apesar de não conhecer a microbiologia, os cervejeiros desenvolveram técnicas
para amenizar as sensações desagradáveis em suas cervejas. Eventualmente,
usavam essas sensações a seu favor, inserindo notas de sabor que são reconhecidas e
desejadas até hoje, mesmo sem o uso de bactérias.
O escritor americano
especializado em cervejas Randy Mosher conta que o estilo inglês
Porter antigamente era um blend de duas produções. Uma Ale
fresca e jovem era misturada a uma pequena parte de cerveja
já envelhecida, que invariavelmente apresentava notas azedas.
Ainda hoje existe uma cervejaria na
Inglaterra que faz uso
desse tipo de blend. Apesar de não ser do estilo Porter, a Strong
Suffolk Vintage Ale usa a mesma técnica.
Rodenbach Caractère Rouge - um dos rótulos da cervejaria |
A região de Flandres do Oeste,
na Bélgica, também tem seu estilo “azedo” conhecido mundialmente. A cervejaria
Rodenbach produz Sour Ales reconhecidas e premiadas mundialmente até os dias de
hoje. Segundo Peter Bouckaert, mestre cervejeiro da americana New Belgium, e
que antes trabalhou na Rodenbach, Eugene Rodenbach, fundador da cervejaria,
trouxe da Inglaterra a técnica de produção das Porters para criar seu rótulo.
Nos Flandres do Leste, as
Sour Beer são conhecidas como Oud Bruin. Baseadas em uma
Brown Ale, elas têm notas de ácido lático e acidez, aliadas a frutas
secas, caramelo e toffee. A mais conhecida delas é a Liefmans.
Novamente Randy Mosher
cita outro estilo que provavelmente teve um passado “Sour”. As
Witbier – cervejas de trigo belgas – que praticamente foram
extintas no início do século XX, voltaram ao auge graças ao cervejeiro
Pierre Celis. Ele foi o criador da Hoegaarden, hoje a mais vendida Wit do
mundo. Mosher diz que, apesar de Celis ter muito cuidado com seus segredos
cervejeiros, suspeita-se que a técnica resgatada por ele envolvesse uma pequena
adição de cerveja com fermentação lática na composição final de uma Witbier. Verdade
ou não, podem vir daí as notas cítricas, condimentadas e de acidez da cerveja.
Berliner Weisse com xarope |
A Alemanha também possui
suas cervejas azedas. Em Berlim existe um estilo feito com
trigo e fermentação lática, conhecido como Berliner Weisse. A
cerveja chegou a ser considerada por Napoleão Bonaparte como “o champanhe do
Norte”. Hoje em dia são servidas, além de puras, com xaropes de frutas que
amenizam sua acidez. Na pequena cidade de Goslar foi criado o Estilo Gose, que também
tem notas láticas e um ingrediente peculiar: sal de cozinha. Apesar de
originário de Goslar, o estilo se tornou famoso em Leipzig. E ganha adeptos por
aí, assim como as Sour Beer.
Matéria de minha autoria, publicada originalmente na revista Mesa Tendências edição 4. Fotos de arquivo pessoal.
7 comentários:
Sou um grande fã de sour beers, impossível não elogiar a matéria, bastante esclarecedora.
Abraços
Danilo Paolillo
Obrigado, Danilo!
Grande abraço
As sour beers são de longe as minhas preferidas. Parabéns pelo post, acho que ajuda a esclarecer, pra muita gente que ainda não conhece, que existe muita cerveja diferente das padrões nesse mundo.
Abraços.
Obrigado, Johnnie!
Grande abraço
E quando uma Ale caseira vira uma Sour? A contaminação acabou trazendo um azedo e um cítrico típicos dessas cervejas, mas não era esse o resultado esperado. Como será que aconteceu, meu caro? Abraços.
André, tudo bem?
Nesse caso ocorreu contaminação em alguma das etapas da produção. Esse tipo de nota azeda normalmente não é bem vindo. Mas eu teria que provar a cerveja para ter idéia do tipo de contaminação.
Um abraço
Bem legal Edu sua matéria, além de bem esclarecedora! Acredito sim que o azedo é um paladar que me agrada bastante na medida certa. Certa vez já bebi uma old bruin, mas honestamente não me recordo. Fiquei interessado nesse estilo, pois sou um grande curioso, e fã de cervejas especiais, e vi um lançamento da cervejaria invicta, a transatlântica, que é uma sour ale.
Grande abraço
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